terça-feira, 12 de maio de 2009

Fúria em duas rodas

- Entre desvios tortuosos, o motoboy, um dos principais motores sociais para o desenvolvimento econômico, transita como minhoca urbana nas avenidas paulistanas. Retrucado por buzinas, o ‘cachorro louco’ raras vezes responde gentilmente. “Já chutei alguns retrovisores”, assume Adilson Ribeiro dos Santos. Assim vivem os motoboys, nem sempre com uma imagem positiva da sociedade: cortando carros, cumprindo metas e arriscando a vida no exercício de seu trabalho.

Fonte da imagem: http://oglobo.globo.com/fotos/2008/02/11/11_MHG_pais_motoboys.jpg

Cansaço e atraso são ações rotineiras na vida de Adilson. Aos 31 anos, casado e morador de Osasco, é pai de um filho que, não por coincidência, gosta de motos. A escolha da profissão não aconteceu de forma voluntária. Por estar desempregado desde 2001, decidiu que deveria usar sua motocicleta como instrumento de trabalho para sustentar a família. “A profissão é meio complicada, muito discriminada. Falam que todo motoboy é ladrão, mas a maioria é pai de família, tudo trabalhador”, desabafa. Nas adrenalinas da vida, percorre diariamente uma distância de 150 km passando por São Paulo, região do ABC, Osasco e cidades do interior. “Gosto mesmo é de pegar umas viagens, é melhor do que enfrentar a gente estressada no trânsito”, descreve Adilson com certo entusiasmo.

A questão social é palavra-chave para definir a problemática dos motoboys. Além de enfrentar o caos diário das megalópoles como São Paulo, eles têm que ‘se virar’ para realizarem seu trabalho com eficácia. Inseridos na base da infra-estrutura capitalista, vorazmente criticada por um dos ícones da sociologia, Karl Marx, eles delegam suas funções sob constante pressão para que o ciclo dessa engrenagem avance com vigor. O estudioso Augusto Stiel Neto, que elaborou um trabalho antropológico sobre os motoboys nas metrópoles, em poucas palavras relaciona a teoria marxista com esses trabalhadores na contemporaneidade: “Os motoboys, enquanto grupo e atores sociais, estão inseridos nas relações de trabalho capitalistas e, portanto, imbuídos de história das relações sociais e de sua evolução enquanto categoria”. Faz sentido: o motoboy, impreterivelmente, deve cumprir horários em determinada empresa, onde geralmente é encarregado pela entrega de malotes e correspondências internas. Para que essa empresa mantenha o giro econômico, é necessário que a entrega seja feita o mais rápido possível – por isso a contratação de um motoqueiro, que transita com mais facilidade nas vias arteriais das grandes cidades. “Andar sob duas rodas no trânsito é muito mais rápido e permite que a comunicação de várias empresas seja mais eficaz, possibilitando em mais produtividade”, afirma Clotilde Veiga, gerente de Recursos Humanos (RH) de uma empresa que ela não quis identificar. Não só a empresa como parte do quadro de funcionários internos também fica satisfeito com o serviço de entregas, uma vez que o setor de Recursos Humanos nem sempre se localiza na própria empresa. Em suma, os motoboys vivenciam na pele o período de globalização – tudo deve ser feito rápido e de maneira eficiente. “Vivemos em uma sociedade onde a velocidade é importante. As coisas precisam acontecer rapidamente”, explica a especialista em Sociologia Econômica e professora da Universidade de São Paulo (USP), Ana Maria Bianchi. A pressa impede que o cidadão espere alguma correspondência importante pelo correio e os motoboys, nas palavras de Bianchi, “são vitais para preencher essa lacuna da necessidade de transportar rapidamente entre os locais”.


Além de ser responsável por parte das entregas da Editora Globo de segunda à sábado durante 10 horas por dia, Adilson garante uma renda extra nas pizzarias por pelo menos quatro vezes na semana; ou seja, por aí vão, em média, 13 horas de trabalhos diários. “O mais difícil da profissão é encarar o trânsito, porque tem muita gente estressada, nervosa, muita fiscalização, muita ‘treta’”, relata o motoboy com certo tom de inconformismo. É por isso que ele prefere trabalhar à noite em uma pizzaria por ser mais sossegado. No mesmo caminho de Adilson encontra-se C. Silva, também de Osasco, 30 anos, casado e pai de dois filhos. Ele prefere não se identificar, pois sofreu um acidente que o fez perder a audição do ouvido direito e não consegue passar em testes de audiometria para renovação da carteira de trabalho. Caso ele arranje um emprego registrado em uma empresa e sofra um acidente, pode ser processado por negligência condicional. Apesar disso, nos fins de semana presta serviços para uma pizzaria no bairro de Alphaville, graças à indicação de Adilson. “É esporádico. Se fizer ganha, se não fizer, não ganha. Os caras te pagam de R$6 a R$7 por hora pra você trabalhar que nem um louco e ainda te xingam se você faz coisa errada”, escancara C..

É rotineiro ver motoristas de ônibus e automóveis particulares disparando palavrões aos motoboys nas mais movimentadas avenidas de São Paulo, como a 23 de Maio, Radial Leste e marginais Pinheiros e Tietê. E vice-versa. O motivo mais comum é a falta de atenção na ultrapassagem de carros para outras faixas, o que acaba resultando em fechamento dos motoqueiros e impedindo-os de circular livremente pela via. Como conseqüência, retrovisores são chutados, carrocerias são arranhadas ou, em casos extremos, uma mobilização maior de vários motoqueiros reunidos acaba comprometendo o fluxo no trânsito. Neste caso, vale ressaltar a força coletivista desse grupo, o que acaba por causar medo nos motoristas novatos e exige maior precaução dos mais experientes. “Se a gente [motoboys] não se unisse, com certeza os motoristas iriam errar mais e causar mais acidentes com os motoqueiros”, diz Alan Silva, que já trabalhou mais de seis anos em cima de uma moto. Ele afirma que, apesar de deixar de ser motoboy na profissão, o sentimento de ‘união com os parceiros’ não deixa de prevalecer. “Posso não conhecer o cara que está naquela moto da esquina, mas sei que se ele sofrer um acidente por imprudência do motorista, eu o defendo. E sei que não vou estar sozinho”, ressalta com convicção. Como Alan diz, acaba sendo mais um jogo de defesa que ataque por parte dos motoboys, uma vez que eles representam pura e vivamente o símbolo de desigualdade social. A professora Bianchi analisa com bons olhos que esses aventureiros em duas rodas, por serem funcionais despercebidos por parte da população, encontram uma identidade coletiva que garantem seu espaço na sociedade. “São as minorias que vão se unir, é natural. Um fenômeno que é bom, embora eles corram e tenham formas de vida arriscada”, teoriza. É como se eles ajudassem a formar a base de uma pirâmide: dependem do transporte para trabalhar, movimentam a economia citadina e ainda estão vulneráveis aos acidentes fatais nas grandes avenidas. O jornalista de O Globo, Adauri Antunes Barbosa, informou os seguintes dados: os motoboys executam 98% das entregas em domicílio no setor de alimentos e transportam 85% dos medicamentos e produtos da área de saúde, como bolsas de sangue e pequenos equipamentos cirúrgicos; movimentam 60% dos malotes dos grandes bancos e são responsáveis por todo o serviço de entregas da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa). Para todo esse serviço arriscado, os motoboys ganham, em média, um salário de R$1 mil, dos quais são descontados do próprio bolso os valores de combustível, uniformes empresariais, capacetes e manutenção da motocicleta. “Líquidos, sobram menos de R$500” disse Moacyr Alberto Paes, diretor da Associação Brasileira de Fabricantes de Motocicletas (Abraciclo).

Segundo números da Abraciclo, cerca de 680.000 motocicletas circulam pela capital paulistana, o que significa um aumento de 127% da frota de dez anos atrás. Desse número, pelo menos 150.000 motoboys são registrados. Parte desse crescimento na compra de motos se dá pela facilidade de crédito. Há quem especule que essa estatística pode aumentar com o infindável acúmulo de automóveis de passeio nas ruas. “Eu acho que uma hora vai parar tudo, de tanto carro que está saindo. É muito carro! Desse jeito, só moto vai andar e bem devagar”, profetiza C. Silva. E ainda arrisca o prognóstico: “A solução para resolver o problema é deixar somente os profissionais na rua; quem passeia deve travar o carro em casa. Esse pessoal tem que andar de ônibus, bicicleta, metrô”. No início do ano, a tentativa de reservar uma faixa exclusiva para motoqueiros na Avenida 23 de Maio foi frustrante. Segundo a Folha Online, “em média, a via tinha, entre as 10h e às 16h, 3 km de lentidão. O índice saltou para uma média de 5 km depois que a nova faixa foi implantada”. Apesar do aumento de compra de motocicletas, o fator social permanece discriminatório em relação aos veículos de passeio. “Quando a pessoa compra um automóvel, se sente mais poderosa [econômica e socialmente]. É uma forma de deslocamento em uma cidade onde a qualidade de transporte coletivo é muito ruim”, define Ana Maria Bianchi. Já o experiente motorista Arnaldo Silva, de 42 anos, pensa de forma diferente. Ele tem dois automóveis para “burlar o rodízio”, pois também depende dele pra trabalhar. Arnaldo acredita que a conduta dos motoboys não se explica com o crescente acúmulo de carros e diz não ter interesse de deixar o automóvel em casa para tomar ônibus até o trabalho. “Sei da importância do rodízio, mas eu me desloco de uma loja para outra. E essa movimentação não tem condição de ser feita com o precário transporte de São Paulo”, afirma o supervisor de cozinhas da rede de restaurantes Ráscal. Fica difícil reverter esse quadro quando se depara com o aumento da venda de veículos de passeio no país. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) divulgou que as vendas do setor aumentaram 30,1% no primeiro semestre desse ano em relação ao mesmo período de 2007, somando um total de 1.338.078 unidades comercializadas. Em outras palavras, como dificultar o crédito de um setor que enche os cofres da economia do país?

A vulnerabilidade é ainda maior quando se analisa o indivíduo sobre as duas rodas; os motoboys são alvos fáceis de policiais no trânsito de São Paulo. Na visão da maioria desses profissionais, os ‘enquadros’ ocorrem por haver uma generalização negativa por parte da polícia e da própria sociedade. Adilson foi uma dessas vítimas. Certa vez, enquanto ia para o trabalho, foi parado por um policial por estar com o retrovisor rachado. Mesmo com todos os documentos legalizados, teve a moto apreendida. “Tive que ficar um mês e meio sem trabalhar até regularizar a situação”, relata o motoboy. O teórico Augusto Stiel lista alguns dos principais problemas decorrentes da violência que acerca o cotidiano dos motoboys: “Barrados em bancos por não terem atestado médico sobre um pino que colocaram na perna por força de um acidente acontecido há anos, parados em blitz policiais, sempre multados por constantes infrações e tratados como marginais pela imensa maioria da população, os motoboys justificam seu comportamento muitas vezes violento como forma de defesa pelo tratamento que recebem. Isso sinaliza para uma hipótese interessante nas relações sociais citadinas: algumas categorias poderiam dar vazão à violência latente, presente na tensão permanente da disputa territorial na cidade, como uma forma de defesa justificada frente a constantes e reiteradas demonstrações de preconceito”. Bianchi enxerga a situação por uma ótica diferenciada. “Não sei se é preconceito, porque os motoboys têm uma atitude que de fato atrapalha o transito. Eles são vítimas, mas também causam acidentes. É mais um conflito de atitudes e de situações mal resolvidas”. Na visão da socióloga, a exclusão social do motoboy, que gera a agressão generalizada e, ao mesmo tempo, um sentido de unidade entre eles, é gerado pela negligência social suscitada pelo cotidiano corrido das megalópoles. “Numa cidade como São Paulo, a presença de motoboys está em todo lugar, e é um fato que nem se discute. Na verdade, as pessoas nem prestam muita atenção na profissão deles”, contesta. E essa insatisfação com o trabalho já vem por parte dos motoboys. “Todos os veículos na rua criam uma situação violenta de coordenação. A própria profissão dos motoboys os deixam agressivos. E os motoristas também tomam atitudes agressivas, por isso ocorre esse choque”, complementa Bianchi.

O cenário é pessimista e desilude qualquer fanático por duas rodas que não encontra outra profissão. “Todo motoboy quer sair dessa vida”, afirma C. Silva. Adilson Ribeiro já cansou de passar por situações complicadas nas ruas de São Paulo, mas diz reservar uma ‘graninha’ para atingir seus objetivos. “Meu sonho é ser professor de educação física”. As limitações do transporte, a relação social com os motoristas de automóveis particulares e o fardo de sustentar uma família não são as principais pedras no caminho para que o seu sonho seja realizado. “Na verdade, o que me falta é tempo”.

Veja a entrevista com Giuliano Cedroni, roteirista do documentário Motoboys: Vida Loka, dirigido por Caito Ortiz, com algumas cenas do longa:



MINI-DICIONÁRIO DO MOTOBOY

- Cachorro louco: motoboy temerário, que pilota com arrojo, podendo causar perigo para si e para os outros motoristas e pedestres;
- Comprar chão ou comprar terreno: cair da moto;
-
Sem terra: alguém que nunca comprou chão;
- Corredor: fileira que fica entre os carros no congestionamento por onde passam os motoboys;
-
Aloprado: Serviço arriscado;
- Bração: Motorista que atrapalha o motoboy;
- Trampo-roça: Entrega em lugar distante.

*Esta reportagem foi originalmente escrita em setembro/2008 e publicada no Portal Anhembi, com uma formatação diferenciada (a qual não gostei muito, por isso o post!)

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7 Atemporalizados:

Márcia W. disse...

Tiagovocê foi lá na Bloga e eu vim aqui ver teu pedaço no latifúndio da rede. Super bacan teu blog, temos várias coisas em comum. Voltarei.

Tiago Ferreira da Silva disse...

Márcia,

Também percebi as senelhanças blogosféricas que temos!
Certamente minarei em seu latifúndio da rede novamente!
hehehheheh

Obrigado pela visita, volte sempre!

Anônimo disse...

valeu por ter dado uma olhada no meu blog =D, valeu mesmo cara, obrigada.

Tiago Ferreira da Silva disse...

Eu que agradeço,
Volte sempre!

Anônimo disse...

fique a vontade para ver meu blog, sua opinião é importante, abraço.

G Santi disse...

Tiago,
Você descreveu para muito o que é a vida de um motoboy. Muito descriminam, apenas, e não sabem diferenciar a necessidade desses profissionais que estão nas ruas. São mal pagos e levam uma vida de cachorro loco mesmo. A preocupação, principalmente do governo, é o alto índice de mortes no transito envolvendo motoboys. E é o que o governo junto a empresas privadas estão fazendo em projetos pelo Brasil. Reforçando a educação no transito, é melhor prevenir do que remediar.
Valeu pela super matéria, muito boa!
Abração.

Tiago Ferreira da Silva disse...

Gustavo,

Os motoboys não deixam de ser o reflexo da pressa e do caos típicos de uma megalópole como São Paulo. São apenas algum dos motores que fazem o capitalismo funcionar, apesar de serem mal remunerados.

Obrigado pelo comentário.
Abraço!

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