Chico veio de Pernambuco a São Paulo para trabalhar em tempos onde serviço braçal tinha-se aos montes. Era uma época boa os anos 80. Em qualquer restaurante precisava-se de cozinheiro, qualquer condomínio clamava por faxineiros. Ditadura? Pra Chico ela praticamente inexistia. Contanto que deixassem ele trabalhar com dignidade e desse condições de estruturar sua nova vida, não via problema algum com os militares no poder.

Ele tinha 17 anos quando veio. Arranjou emprego de cozinheiro em um bar no centro da cidade. Trabalhava cerca de 10 horas por dia. Ele saía às 5 horas da manhã em ônibus lotado, era obrigado a suportar o mau cheiro dos outros passageiros que compartilhavam o transporte público e estava passível a chegar atrasado por conta do trânsito inesperado, caso algum acidente atrapalhasse seu cotidiano. Um cidadão comum sem interesse para a informação pública. Ninguém quer mais do mesmo.

Morava no Capão Redondo. Por dia, gastava cerca de 5 horas diárias no 'busão', como estava acostumado a falar.

Entretanto, teve um dia que um imprevisto ocorreu. Sua mulher, uma pernambucana da mesma cidade, passou muito mal e estava precisando de assistência. Na comunidade, nos rascunhos da periferia da época, ninguém podia ajudá-la porque todos os moradores também precisavam trabalhar.

Então, Chico teve que ligar do orelhão para o serviço, justificando sua ausência. Seu chefe estava numa correria danada no serviço, pois o movimento do restaurante estava em alta. Respondeu ao Chico: "Cara, preciso de você aqui. Aqui tá muito cheio, não tá dando pra atender todo mundo". Chico lamentou, mas não podia deixar a mulher em estado de delírio de febre sozinha em casa. O chefe desligou na cara.

No dia seguinte, Chico estava na rua. Perdido, desesperançoso e frustrado pelo empenho que deu ao trabalho, acabou conhecendo o fundo do poço. Custou a arrumar um outro emprego.

Chico trabalhou nesse restaurante por 10 anos e foi promovido, no máximo, duas vezes. Contava com um salário mensal que supria apenas o necessário para comer, trabalhar e manter o custo da casa.

Sempre quis sair do bairro. O lugar era muito longe do centro, o que dificultava a locomoção. Mas mudar-se sairia caro demais. Cada vez que um imóvel se aproximava do centro, ficava mais distanciado das condições financeiras de Chico. O jeito era ficar por ali mesmo. Se fosse migrar, acabaria por ficar em outra favela, o que na prática não mudaria nada; só lhe traria complicações.

Um ano depois de muito perrengue - que incluía o duro cotidiano de catar papelão nas ruas para trazer comida pra casa -- deu a sorte de arrumar um emprego de faxineiro num condomínio. O salário não era bom, mas pelo menos era um trabalho. E não dava pra dispensar, pois no vocabulário do cidadão comum essa palavra não consta.

Desta vez ele foi esperto. Enquanto trabalhava, pagou um curso de segurança para garantir que não ficaria dependente da profissão que arrumara recentemente. Com o curso, facilmente arrumaria serviço caso ficasse desempregado.

Fez o curso, e depois de dois anos migrou para a área da segurança, que lhe garantia um salário melhor para a família, que já estava em três filhos. As coisas andavam bem para ele, graças ao seu Deus que lhe ajudava muito ao ouvir suas orações diárias antes de dormir. Os filhos estavam tendo um bom desempenho escolar, o patrão gostava do interesse de Chico pelo trabalho e não demoraria para dar-lhe um aumento; e para melhorar o que já ia bem, sua mulher arrumou uma pontinha trabalhando em casa de família. A renda mensal já ia pra mais ou menos R$1.300,00, o que era muito bom.

Entretanto, um dia Chico e sua mulher sairiam para trabalhar e não mais voltariam para casa. Enquanto cumpriam a carga horária que a rotina obrigava, viram na televisão tratores invadindo uma comunidade para reivindicar o direito de tomar o terreno privado de volta, com ou sem o consenso dos moradores. Coincidência ou fatalidade, junto com os escombros estavam os fragmentos destruídos de sua casa. Seus filhos estavam no colégio.

Chico e sua mulher não estavam sabendo de nada. Ninguém lhes perguntou se eles queriam sair dali. E, mesmo que perguntassem, responderiam um convicto 'não', com o afinco do nacionalista que defende a sua pátria, já que eles construíram uma história naquele local. Tinham bons vizinhos que ajudavam-se mutuamente e viviam em paz seus raros momentos de descanso no doce lar.

Quando Chico e a mulher chegaram no local que deveria ser o abrigo conjugal, não aguentaram e reforçaram o coral de lágrimas dolorosas que enchia os olhos de 800 famílias como as dele. Acabou o sonho de ter uma vida melhor, acabou aquele alívio diário de chegar em casa e poder jantar com a família. Tudo isso por conta de uma empresa de transporte público que reivindicou o local e tirou, de maneira desumana, milhares de famílias de suas casas.

-----------------------------------------------------------------------------------------------

*Essa história é fictícia, mas é muito semelhante à biografia de cada chefe de família que perdeu seu direito de morar no Capão Redondo. Cerca de 2.000 pessoas ficaram sem casas porque a Viação Campo Limpo decidiu pegar seu terreno de volta. Para isso, a Justiça é eficiente. Permitiu que milhares perdessem seus lares diários de forma hedionda, absolutamente desumana.

Pode ser meio tarde, mas o "Atemporalizando" está de luto por essas famílias que não tem mais o aconchego diário de seus lares, por mais precários que eles possam parecer. Espero que a Prefeitura e o Estado encontrem soluções cabíveis para dar um teto aos desalojados e comece a repensar a expropriação de moradores que vivem em terrenos particulares. Capão Redondo não é um caso isolado.

Aqueles mesmos cidadãos pagam impostos e têm o direito de terem subsídio do Estado com extrema urgência. Ninguém pode dormir na rua com tranquilidade vendo suas antigas casas desmoronadas.

**Quero deixar também meu repúdio ao editorial elitista e pró-empresarial do jornal O Estado de S. Paulo. Só mais uma prova de que a elite não está nem aí pro país e nem pretende fazer nada para mudá-lo. O argumento utilizado é típico da burguesia que desconhece a realidade das ruas de pedra.

Para quem quiser ler o relato de quem acompanhou
in loco a situação dos moradores do Capão, dê um pulo na página de Ferréz.

Quem está por fora do que está acontecendo na periferia de São Paulo, leia aqui a matéria da Folha.

Como o cidadão pobre sempre é negligenciado pela pérfida Justiça brasileira, espero que os moradores encontrem alguma solução, encontre abrigos enquanto os mandatários do país e do estado dormem tranquilamente em seus casarões. Tenham consigo aquela frase dos Racionais: "onde estiver, seja lá como for, tenham fé porque até em lixão nasce flor".

Infelizmente, é isso que lhes resta.

***Em tempo: reli o texto e vi que continha vários erros de gramática. É isso que dá escrever às pressas. Já corrigi os devidos erros e peço desculpas aos leitores que sofreram para entender o que dizia essas linhas. Os erros já foram ajustados.

Compartilhe este Post:
MySpace Agregar a Technorati Agregar a Google Agregar a Yahoo! Adicionar ao Blogblogs

4 Atemporalizados:

Márcia W. disse...

Tiago,
erros de gramática ou de atordoamento?
Eu, pelo menos, (ainda) fico desequilibrada lendo/vendo essas truculências....

Daniel Silva disse...

Só poderia entender realmente essa dor, se fosse uma deles. Imagina você sem saber de nada, chegar em seu lar e ver apenas destroços pelo chão e fumaça, li no Metro que familias receberiam para voltar as suas cidades de origem, mas e a vida delas? O emprego? Voltaram para que, para passar fome na caatinga do nordeste? Sem palavras...
Apesar de ser fictício, o post foi muito bem escrito.

Tiago Ferreira da Silva disse...

Márcia,

Os tratores já fizeram questão de destroçar todo o equilíbrio do Capão.

Daí, só restou atordoamento.

Tiago Ferreira da Silva disse...

Daniel,

Valiosa essa tua informação. Eles despejam o pessoal daqui com toda aquela fúria antimigratória, mas esquecem que os mesmos que têm barracos em favelas são aqueles que servem o cafézinho pros patrões, aqueles que limpam a privada suja de merda da elite mandatária...

E o pior é que rola um argumento que clama por acabar com as favelas em SP. Olha que sem noção! Se é pra acabar com as favelas mandando aqueles que moram nela para as suas terras de origem, que todos eles vão à MERDA! Isso mesmo...

E ainda reclamam da discrepância social, do aumento da violência. São atitudes fascistas e pró-empresariais, que nem o editorial do Estadão que está linkado no texto, que fazem do Brasil um 'Brazil' que não existe, que não se sustenta e que piora o sistema da realidade a qual o verdadeiro BraSil está inserido.

Related Posts with Thumbnails